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segunda-feira, 2 de maio de 2011

A voz do rádio...

por
vieirajr (lata)
Quando fiquei sabendo da morte do irreverente Marcão, historiada por Célio Baião e Saulo Nunes, enquanto trocávamos palavras sobre o primeiro Sput-uaae, no Campus 2 da Funec, por um instante, questão de milésimo de segundos passou um filmete em minha inesgotável e conturbada memória. Naquele segundo refleti sobre aquilo que não é esgotável, ou seja, a morte. Encontro-me com um pouco mais de meio século e até hoje não me sinto confortável com a única certeza que temos em vida: o sonho eterno. Tive experiência e experiências sobre a invisível arte de imaginar que somos mutantes e jamais queremos deixar de ser intocáveis porque acreditamos que somos verossímeis infinitamente. É, irmão, quando sentimos a dor aguda e insistente, bate a saudade das pessoas tão queridas e admiradas que nos abandonam sem aviso prévio. Morte por que nos deixa excitados? Na verdade, penso eu, morte são cicatrizes e marcas que rodeiam o nosso frágil e vulnerável corpo. Parece-me que a morte é uma sucessão de vidas a nascer.

Bem, voltando ao universal Marcão, tomo a liberdade de invadir a privacidade familiar para historiar o que aconteceu naquela última terça-feira de agosto. De bate-pronto fui intimado a bebericar alguns copos aveludados de cerveja e ouvir a boa música que lembrasse o gosto ímpar do Marcão pela música popular brasileira. Depois de algumas horas estávamos à beira do ex-rio Paraná, e suavemente uma brisa, que por instantes se transformou em vento forte e prometendo chuva, entrou pela varanda da casa onde nos alojávamos, e sem pedir licença nos acalentou como se fosse o abraço de esperança. 

Enquanto a pizza não vinha, eu, Célio e o professor David comentávamos sobre a chuva prometida, ao violão, magistralmente dedilhado por Saulo, ouvíamos belas, ótimas músicas e esplendidas letras na voz do cancioneiro jalesense. No vai e vem do banheiro, abrir geladeira, cortar a pizza, pedaços da vida do Marcão eram contados por Saulo, que por momentos o senti com vontade de rever o amigo que havia partido não mais que sete horas. Por momentos, vimos o que impossível podia acontecer, mas a razão foi mais nobre e lúcida. Sentíamos também que falar de Marcão era falar de tantos outros companheiros de brasilidade, em particular aqueles que morreram na procura irrequieta de um sonho perene com singularidade de um estilo próprio. Aos poucos fomos derrotados pela certeza que desvendar o mundo poético é exercitar-se a sensibilidade ficcional, independente da nossa consciência crítica e reflexões teóricas. 

Na frouxidão da práxis, da verdade, me lembrei de uma passagem, talvez a única, com Marcão. Foi lá pelos idos das décadas de 70 e 80 quando tive o privilégio de trabalhar no Teatro Pixinguinha/Sesc na produção de shows. Nesse período conheci o empresário-marido da cantora, se não me falhe a memória, Milene, que fez uma temporada no Pixinguinha. De São Paulo trouxe o disco dela para presentear Marcão, na certeza que ele não a conhecia. Ledo engano. Registro com carinho que a visão musical de Marcão era ímpar e jovial. E foi nessa toada que ele viveu a vida e ao mesmo tempo o deixou levar. Porque ele entendia que amar era um fluxo intenso de prazer, solidão, imensidão e espírito solidário. O folhetim foi o seu marco aqui na terra dos homens que acreditam na gênese dos deuses desafortunados.

Voltando aos aposentos beira lago, já nos últimos goles, quando os ponteiros marcavam implacavelmente o nascer da quarta-feira de agosto, o mestre Saulo interpretou como ninguém, mais uma vez em homenagem ao amigo, Mentes ao meu coração, de Francisco Malfitano.  Ao som de Mentes ao meu coração, os nossos olhares se cruzavam como se fossem luzes a procura do luar perdido. A cronologia do tempo foi revisada por cada um de nós porque o coração militante da harmonia explodiu sem dor em nosso peito marcado pelo tempo. Foi nesse embalo, mistura de seresta com saudade, que abaixamos a adrenalina e voltamos ao nosso mundo analógico. Tão concretista que conheci o lado poético do professor David, registrado com vanguardismo em DP 58 a 92.  Antes de partimos nos reverenciamos por mais uma vitória da perseverança.

Guardiã
Se a liberdade é o destino do homem, Marcão teve sua trajetória fincada na esperança, nos ideais sociais e na arte de contar história do rádio. Brincalhão, bem-falante, bem humorado é a imagem que guardo dele, apesar de nos vermos esporadicamente ao longo das últimas décadas. Tenho certeza que nada me impossibilita de deixar cravado nas páginas do Jornal de Jales uma saudação respeitosa ao Marcão.

Nesse instante de pressão emocional, tenho a oportunidade de me sentir habilitado na construção do pensamento de resistência ao podre, ao hediondo, ao abismo econômico e social, ao medieval Busch, ao proselitismo político.

Abraços do
Célio e Saulo
em tempo: texto de agosto de 2005. estava perdido na memória do computador.